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O ponto não é construir uma análise com base no que já aconteceu, e sim no que está em formação a partir do que já aconteceu

Uma contribuição da sabedoria tradicional chinesa à análise de riscos.


Introdução


Nas rotinas corporativas, especialmente no campo da segurança, é comum ouvirmos que o primeiro passo para qualquer planejamento eficaz é uma boa análise de riscos. E, de fato, trata-se de uma prática essencial. Através dela, busca-se identificar vulnerabilidades, avaliar impactos e estimar a probabilidade de determinados eventos ocorrerem no futuro, com base em dados e históricos passados.


Esse tipo de abordagem, muitas vezes estruturada por normas como a ISO 31000 ou pelo modelo tradicional de matriz de risco, ajuda a criar protocolos, dimensionar recursos e tomar decisões de forma mais racional.


Mas um ponto merece reflexão: Será que o simples fato de algo ter ocorrido no passado é suficiente para estimar sua chance de se repetir?


E mais: Ao focar tanto naquilo que já aconteceu, será que não estamos, sem perceber, deixando de olhar para o que está se formando agora, no presente vivo e mutável?


Essas perguntas não têm como objetivo invalidar os modelos existentes. Pelo contrário: servem de convite para pensarmos como outras formas de saber, especialmente a sabedoria tradicional chinesa, podem oferecer contribuições complementares à nossa prática. Uma sabedoria que não se baseia apenas na previsão, mas na percepção estratégica do que está em transformação.


A lógica predominante: previsão por repetição


Diversas análises de risco realizadas nas organizações se baseiam em uma lógica bastante difundida: a de que eventos passados ajudam a prever o que pode ocorrer no futuro. Se determinado tipo de incidente aconteceu uma ou mais vezes em um dado intervalo de tempo, supõe-se que exista uma probabilidade mensurável de que ele volte a ocorrer. 


É a partir dessa lógica que se constrói a maioria das análises quantitativas de risco. Elas buscam dados históricos, frequência de ocorrências e consequências anteriores, para então atribuir números, porcentagens ou níveis de risco a cada cenário identificado. Essa abordagem pode ser extremamente útil quando se tem acesso a dados confiáveis e quando o ambiente de operação é relativamente estável.


Por exemplo, se dois furtos ocorreram em uma área de estacionamento nos últimos seis meses, é comum considerar que a chance de ocorrer um terceiro furto nos próximos meses seja significativa. Com base nisso, tomam-se medidas para tentar impedir novas ocorrências, como o aumento da vigilância ou a instalação de novas câmeras.


Mas aqui surge um ponto crítico. Embora esse método forneça uma aparência de controle e previsibilidade, ele frequentemente deixa de considerar uma variável essencial: o contexto. Nenhum evento é exatamente igual ao outro. Cada ocorrência carrega uma combinação única de fatores visíveis e invisíveis, como o estado emocional dos envolvidos, a dinâmica do ambiente, o fluxo das relações e até mesmo o momento político ou social em que o fato acontece.


Assim, ainda que o histórico ofereça uma referência importante, ele não deve ser confundido com garantia de repetição. Eventos passados podem até sugerir tendências, mas não determinam o que está por vir. E é justamente nesse ponto que outras formas de pensamento podem nos ajudar a ampliar o campo de percepção.


Complementando com análise qualitativa


Diante das limitações do modelo exclusivamente quantitativo, muitas organizações passaram a adotar também análises qualitativas de risco. Esse tipo de abordagem não se baseia apenas em números ou frequência de ocorrências, mas recorre à experiência, ao julgamento profissional e à observação direta do ambiente.


Na análise qualitativa, os riscos são avaliados a partir de critérios como gravidade potencial, vulnerabilidades percebidas, e capacidade de resposta da organização. Utiliza-se, muitas vezes, classificações subjetivas como alta, média ou baixa probabilidade, e impacto leve, moderado ou severo. A subjetividade, nesse caso, não é um defeito, mas uma tentativa de lidar com situações onde não há dados estatísticos suficientes ou onde a complexidade dos fatores torna inviável uma medição precisa.


Essa abordagem se mostra especialmente útil em contextos dinâmicos, onde a simples repetição do passado não dá conta de explicar o presente. Ela permite incluir no processo de análise elementos que dificilmente seriam quantificáveis, como clima organizacional, fatores humanos e percepção de risco dos próprios profissionais envolvidos na operação.


É justamente nesse ponto que a sabedoria tradicional chinesa pode oferecer uma contribuição relevante. Em vez de propor uma nova metodologia ou substituir as já existentes, ela pode ampliar a qualidade da análise qualitativa, oferecendo uma lente estratégica mais sensível à transformação constante das situações.


Uma sabedoria que observa não apenas o que já aconteceu, mas o que está em processo de formação a partir do que já aconteceu.


A visão da sabedoria tradicional chinesa


A sabedoria estratégica clássica da China não se desenvolveu a partir da lógica da repetição, mas sim da observação profunda das transformações no campo das relações, dos fenômenos naturais e dos movimentos humanos. Em vez de tentar controlar o futuro com base no que já aconteceu, ela propõe uma postura de atenção contínua ao que está se configurando no presente.


Esse pensamento está na base de obras como A Arte da Guerra, de Sun Tzu, um clássico milenar que ainda hoje é referência em ambientes militares, empresariais e institucionais. Também está presente em sistemas tradicionais como o Ving Tsun, arte marcial chinesa voltada ao cultivo da inteligência estratégica por meio da experiência corporal, que serve de inspiração do trabalho que venho desenvolvendo ao longo dos anos.


Na perspectiva chinesa, um evento anterior não é uma previsão, mas uma marca. Ele deixa rastros, mas não moldes. O importante não é simplesmente repetir o que foi observado, mas perceber como o campo está sendo afetado, reorganizado ou conduzido a partir daquela ocorrência.


Dessa forma, o foco não está no cálculo da probabilidade, mas na leitura do potencial. O que o campo atual favorece (shì 势, o potencial da situação)? O que está se tornando possível? Que combinação de fatores está se articulando agora e pode favorecer ou neutralizar um determinado tipo de risco?


Essa abordagem não substitui modelos técnicos, mas os complementa com uma sensibilidade mais ajustada ao tempo vivo, às variações sutis e às situações que ainda não se repetiram, mas já se insinuam.


A diferença entre prever e perceber


Na lógica ocidental predominante, analisar risco é, em grande parte, uma tentativa de prever o futuro. Parte-se da premissa de que, quanto mais informações forem reunidas sobre eventos passados, mais preciso será o cálculo do que pode acontecer adiante. Esse esforço por antecipação é legítimo e necessário em muitos contextos. No entanto, ele carrega consigo uma armadilha: a de acreditar que o futuro se comporta como o passado.


O pensamento estratégico chinês propõe outra abordagem. Em vez de se apoiar na previsão, ele valoriza a percepção. Prever está ligado à ideia de projetar um cenário futuro com base em dados anteriores. Perceber, por outro lado, exige atenção plena ao presente. É uma escuta refinada do que está se articulando agora, ainda que de forma sutil, nos bastidores da realidade visível.


Enquanto a previsão busca controlar, a percepção busca compreender. E compreender não no sentido teórico, mas no sentido de estar presente e sensível ao que emerge.


Um exemplo simples: imagine que não houve registros recentes de furto em determinado espaço, mas observa-se uma mudança no comportamento das pessoas, uma redução na vigilância ativa, uma alteração nos fluxos de circulação. A lógica da previsão poderia classificar o risco como baixo, pela ausência de ocorrências. A percepção estratégica, no entanto, captaria que o campo está mais favorável a esse tipo de incidente, mesmo sem evidências estatísticas.


É nesse ponto que o olhar da sabedoria tradicional chinesa pode refinar a análise qualitativa. Ele não elimina o passado, mas também não se aprisiona nele. O passado é uma referência, mas o presente é soberano.


Proposta de integração


A intenção deste artigo não é invalidar os modelos clássicos de análise de risco, mas abrir espaço para uma ampliação do olhar. A sabedoria tradicional chinesa pode oferecer uma contribuição valiosa quando compreendida como um instrumento de percepção mais fina e estratégica, especialmente no contexto da análise qualitativa.


Essa integração pode ser especialmente útil em áreas como a segurança corporativa ou a segurança pessoal, onde o comportamento humano, a ambiência e a adaptação às circunstâncias têm peso decisivo.


Em um shopping center, por exemplo, imagine que não há registros recentes de roubos ou ações violentas, e por isso a análise quantitativa classifica o risco como baixo. No entanto, a percepção dos operadores mais experientes começa a notar sinais que não aparecem em gráficos: mudança na postura de lojistas, surgimento de pessoas em atitude suspeita que circulam várias vezes por dia, variações no padrão de fluxo em horários atípicos, alterações na comunicação informal entre funcionários. Mesmo sem dados concretos, percebe-se que algo está em formação. É nesse momento que a atenção estratégica deve ser acionada. E agir nesse ponto pode significar evitar um incidente que, estatisticamente, era improvável.


Na segurança pessoal, o mesmo princípio pode ser aplicado. Um operador encarregado de proteger um executivo em trânsito talvez não detecte nenhuma ameaça direta ou sinal técnico de perigo imediato. Mas uma mudança súbita no comportamento de motoristas ao redor, um grupo que parecia disperso mas passa a se alinhar em um padrão estranho, ou mesmo uma quebra de ritmo no ambiente pode acender um alerta. Essa percepção não vem de dados, mas de sensibilidade desenvolvida. E nesse caso, o operador não reage a um ataque em curso, mas se reposiciona estrategicamente antes que o campo favoreça uma agressão.


Esses exemplos demonstram que perceber o que está se formando pode ser mais eficaz do que apenas reagir ao que já se confirmou. Quando se atua com base nessa escuta do campo, o tempo passa a ser um aliado. O movimento é mais sutil, mais fluido e menos dispendioso. A prevenção ocorre antes que a urgência surja.


Conclusão


Uma análise de risco feita apenas com base no que já aconteceu pode oferecer certo nível de previsibilidade, mas ela corre o risco de ignorar o que está se formando no campo presente. A sabedoria estratégica clássica da China nos convida a refinar essa escuta. Em vez de tentar controlar o futuro com base em estatísticas, ela estimula a percepção dos sinais sutis que indicam uma possível tendência. Esses sinais são chamados, em alguns estudos, de indícios significantes.


Eles não são provas, nem certezas, mas manifestações discretas que pedem atenção. Captar esses sinais exige presença e sensibilidade. E ao percebê-los, a proposta não é reagir de forma direta, mas intervir de maneira oportuna, discreta, quase imperceptível. São intervenções pequenas e cirúrgicas, realizadas com a intenção de criar condicionantes que favoreçam o efeito desejado. Trata-se de uma atuação estratégica sutil, muitas vezes não percebida pelos demais, mas que pode transformar completamente o desfecho de uma situação.


Essa é uma diferença fundamental entre ação direta e ação indireta. A ação direta, quando necessária, tem seu valor, principalmente em contextos de urgência. No entanto, ela pode gerar resistência, aumentar o atrito nas relações humanas e, em alguns casos, acirrar conflitos. Já a ação indireta, se bem conduzida, pode ser mais construtiva, pois atua na base, reorganizando o campo. É como transformar um confronto em encontro.


Para tornar essa ideia mais acessível, pense no exemplo de um agricultor. Ele não obriga a planta a florescer. O que ele faz é preparar o solo, cuidar da irrigação, proteger contra pragas e acompanhar os ciclos naturais. Sua ação é indireta, mas profundamente eficaz. Ele constrói as condições para que o efeito (o florescimento) aconteça por si mesmo, no tempo certo.


Na área de segurança, algo semelhante pode ocorrer. Por exemplo, ao invés de agir apenas quando o conflito já se instalou, um profissional atento pode notar uma tensão crescente entre setores de uma equipe ou entre o público e os vigilantes. Ao reorganizar a escala de turnos, modificar silenciosamente a rota de circulação ou fazer uma escuta sutil de um dos envolvidos, ele está plantando condições para que o atrito se desfaça antes de se tornar um problema declarado. Isso é ação indireta e oportuna.


Usar essa lógica a uma análise de risco é ampliar sua função. Em vez de produzir apenas um relatório técnico, ela passa a alimentar um processo de percepção estratégica contínua, que serve como referencial de conduta, não como um modelo fixo a ser seguido. É a diferença entre um trilho e uma trilha. O trilho é rígido, imutável, exige força e resiliência quando há desvios. Já a trilha, mesmo apontando para a mesma direção, permite ajustes, desvios e adaptações conforme o terreno. Ela se apoia na mudança, e não a teme.


Nesse sentido, um planejamento de segurança inspirado por essa abordagem não busca controlar todas as variáveis, mas desenvolver a adaptabilidade da equipe para lidar com elas. A adaptabilidade, aqui, substitui o esforço pela inteligência. Em vez de resistir ao inesperado, o profissional aprende a apoiar-se nele. E com isso, não apenas reduz riscos, mas também transforma a segurança em um componente estratégico mais vivo, mais humano e mais eficaz.

 
 
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