Simular é Ensaiar. Simbolizar é Transformar: Uma Perspectiva Estratégica para a Segurança Contemporânea
- Fabio Gomes
- 5 de mai.
- 4 min de leitura
Introdução
No campo da segurança — seja em shopping centers, aeroportos ou operações de alto risco — a preparação é uma exigência inegociável. Simulações são amplamente utilizadas para permitir que equipes estejam prontas para agir diante de crises. Mas e se estivermos limitando nosso desenvolvimento ao ensaio de procedimentos, quando poderíamos acessar um campo mais profundo de transformação estratégica?
Este artigo propõe uma reflexão: à luz da sabedoria tradicional chinesa, sobre a diferença entre simular e simbolizar — e como essa distinção pode ampliar significativamente a formação de profissionais da segurança em diferentes setores.
A Simulação e seu Valor
A simulação é uma ferramenta consagrada. Reproduz cenários de crise, testa reações, ajusta rotinas, aperfeiçoa respostas. É uma forma de gerar familiaridade com o inesperado — ainda que, paradoxalmente, em um contexto controlado. Por mais realista que seja, a simulação é, essencialmente, um ensaio: os participantes têm funções definidas, há roteiros prévios, protocolos claros e um desfecho conhecido.
Ela cumpre bem o papel de reforçar padrões operacionais, sobretudo em ambientes onde o erro pode ter consequências sérias. No entanto, é preciso cuidado para que esse reforço não se transforme em rigidez. Quando uma equipe é treinada apenas para repetir fórmulas pré-estabelecidas, corre o risco de perder a capacidade de adaptação diante da instabilidade real. Nesse sentido, é instrutiva a lição de Sun Tzu: “o que é de extrema importância na guerra é atacar a estratégia do inimigo”. Isso nos lembra que o domínio estratégico exige mais do que procedimentos — exige a compreensão das intenções em jogo e a habilidade de desarticulá-las antes mesmo que se concretizem.
A Experiência Marcial como Dispositivo Estratégico
Minha trajetória como consultor de segurança é fundamentada em mais de três décadas de estudo e prática do sistema marcial chinês Ving Tsun, sob a mentoria do Grão-Mestre Leo Imamura, na linhagem direta do Patriarca Moy Yat. Esse sistema, com raízes no pensamento estratégico clássico chinês, compreende que os movimentos marciais não são técnicas, no sentido de um procedimento padrão para alcançar um determinado objetivo, mas dispositivos corporais de combate simbólico.
Como dizia o próprio Patriarca Moy Yat, “a erudição e a marcialidade se completam”. Ou seja, não se trata apenas de agir, mas de desenvolver uma conduta lúcida, sensível à situação, que nasce de uma sabedoria encarnada. Nessa perspectiva, a ação não é imposta, mas surge em consonância com o ambiente — exatamente como propõe a tradição estratégica chinesa.
Simular é Prever. Simbolizar é Antecipar.
Essa visão inspirou o formato de treinamento que desenvolvi ao longo dos anos, inclusive quando fui convidado a realizar instruções de Ving Tsun para o Curso de Forças Especiais do Exército Brasileiro, especificamente durante a fase de contraterrorismo. Ao invés de realizar simulações teatrais ou com final previsível, propus uma estrutura em três etapas:
Alta previsibilidade — onde os participantes têm amplo conhecimento do que ocorrerá.
Média previsibilidade — com acesso parcial às informações sobre o cenário.
Baixa previsibilidade — onde o desconhecido prevalece, estimulando respostas espontâneas.
Esse percurso estimula, de forma progressiva, a transição da simples execução de procedimentos para o desenvolvimento da capacidade de adaptação e antecipação estratégica. Aqui, novamente, Sun Tzu é direto: “vencer sem lutar é o auge da habilidade”. E vencer sem lutar exige leitura de terreno, sensibilidade tática e gestão do emocional — não apenas reação programada.
É neste ponto que a fala de Bruce Lee ressoa com profundidade. Discípulo de Ip Man, o mesmo mestre do Patriarca Moy Yat, Bruce formulou com clareza ocidental um princípio central do pensamento chinês sobre adaptabilidade:
“Esvazie sua mente. Seja amorfo, sem forma, como a água. Se você coloca água em um copo, ela se torna o copo. Se você coloca água em uma garrafa, ela se torna a garrafa. Se você a coloca em uma chaleira, ela se torna a chaleira. A água pode fluir ou pode destruir. Seja água, meu amigo.”
Essa metáfora expressa exatamente o que se busca nos estudos simbólicos: a habilidade de transitar entre formas, sem se fixar em nenhuma. Não se trata de vencer pela força, mas pela adequação. Ser como a água é agir no tempo justo, com a força certa, na direção apropriada.
Do Procedimento à Sabedoria Situacional
Essa abordagem é particularmente relevante para o profissional de segurança. Afinal, não basta seguir protocolos: é preciso interpretar o ambiente, captar nuances, responder com lucidez diante da incerteza. Isso é verdadeiro em aeroportos, onde um gesto sutil pode indicar um risco iminente, ou em centros comerciais, onde o fluxo de pessoas e emoções cria uma atmosfera em constante mutação.
Ao contrário da técnica, que se volta para o que é previsível, a sabedoria situacional — como propõe a sabedoria chinesa — atua sobre aquilo que está em gestação na situação. O conceito de shi (勢), central nesse pensamento, orienta o indivíduo a perceber o potencial latente da configuração presente. O profissional deixa de ser um executor e se torna um estrategista — mesmo em ações rotineiras.
Conclusão: Segurança como Campo Estratégico de Adaptação
A simulação continua sendo uma ferramenta válida e necessária. No entanto, integrá-la a estudos simbólicos amplia sua eficácia, levando o profissional para além do campo do controle — rumo à consciência situacional e à autonomia estratégica.
A tradição chinesa nos lembra que o verdadeiro desafio não é vencer diretamente um oponente, mas se deixar portar pela situação, construindo condicionantes para alcançar naturalmente o efeito desejado. Treinar com base em dispositivos simbólicos não é apenas preparar-se para o risco: é transformar-se com ele, desenvolver uma presença capaz de influenciar o curso da situação sem resistir a ela, ou seja, sem usurpar.
Essa é a segurança como deve ser: adaptativa, estratégica e profundamente humana. Ou, como disse Bruce Lee, seja água, meu amigo.